Barbara Heliodora
Uma das convicções enganadoras ainda correntes que nos assolam afirma que, com a passagem do tempo, “progredimos” ou “evoluímos”. Pois, nestas poucas semanas que envolvem a época natalina (e talvez até mesmo como o mais precioso de todos os presentes), estamos tendo, no Teatro Nelson Rodrigues, da Caixa Econômica Federal, uma assustadora prova de que há qualquer coisa de podre no reino da cultura (para parodiar todo mundo sabe quem), com a apresentação de uma série de leituras de textos apresentados pelo histórico “Grande Teatro Tupi”. Se citar é válido, podemos recorrer a Chico Buarque e dizer que, a respeito do famoso “Grande Teatro”, quem não viu não pode mais ver para crer, quem vê o panorama atual não pode reconhecer.
A inquietação e a efervescência que dominavam o mundo das artes cênicas há 40 ou 50 anos eram um desafio constante, que produziu toda uma série de tesouros teatrais: a surpreendente riqueza do repertório do Teatro Brasileiro de Comédia, que importou diretores que formaram gerações de atores —- das quais saíram as companhias de Sergio Cardoso, Cacilda Becker, Tonia Carrero e o Teatro dos Sete —- porque se tornou impossível comportar tantos talentos e astros em um único núcleo; o comprometimento do Teatro de Arena, a investigar a realidade brasileira; os Artistas Unidos de Morineau; a melhor fase de Dulcina; a contribuição decisiva de Maria Clara Machado; e tantas outras atividades profissionais constantes, que começaram com o advento de Nelson Rodrigues e Silveira Sampaio (os descobridores da Zona Norte e da Zona Sul). Tudo isso, minha gente, existiu. E existiu montando uma vasta gama de grandes textos e grandes espetáculos, clássicos, populares ou desbravadores.
Como isso não bastasse, apareceu, na época, um novo veículo misterioso (sim, porque muitas vezes teimava em permanecer mais ou menos embaçado na heróica telinha de 14 polegadas), onde, apesar da precariedade técnica, surgiu o “Grande Teatro Tupi”. É preciso, no entanto, voltar para trás na História, a fim de convencer algumas gerações de que houve tempo em que TUDO na televisão era ao vivo, que não havia tape , só havia ator, talento e uma certa dose de loucura: Sergio Britto, Fernanda Montenegro, Ítalo Rossi, Nathália Timberg, Fernando Torres, Aldo de Maio, Francisco Cuoco, Carminha Brandão e mais dezenas de outros destruíam laboriosamente o mito de que seja fácil a vida de artista. Ao mesmo tempo em que interpretavam no palco aquilo que se costumava chamar de peça de teatro, isto é, um texto cuja interpretação, adequadamente realizada, demora de duas a três horas, depois do espetáculo tinham que decorar um texto por semana (geralmente coisa do tipo Sófocles, Strindberg, Pirandello), em um pouco ortodoxo período de ensaio (freqüentemente da meia-noite às três), para apresentá-lo, pronto e lindo, na segunda-feira seguinte, no “Grande Teatro Tupi”. Será que alguém tem idéia do que é a tarefa de realizar essa rotina por oito anos?
De tudo isso só resta a memória, e as leituras agora apresentadas são uma mínima amostragem de tudo o que foi feito há quase meio século, período ao longo do qual deveríamos ter “progredido” e “evoluído” no campo da cultura. O que houve? Os anos negros da Censura? Sem sombra de dúvida. Mas não basta. A censura já acabou há
tempos, e nem por isso o teatro apresenta mais, com a freqüência de outrora, espetáculos de grande categoria como fazia então, e nem, com toda a sua tecnologia, a televisão apresenta um bom teatro por semana (nem por mês, nem por ano).
Como, há meio século, foi possível a montagem de “O mambembe”?
O panorama de hoje, a não ser por raras exceções, é formado por um imenso desfile de monólogos. Peças com dois personagens já têm status de superprodução. Os textos que duram uma hora e meia são “longos”. E estou ficando com medo de, em breve, termos intervalos para comerciais. Se foi Dulcina quem instituiu o descanso semanal da companhia, quando antes tudo era apresentado de domingo a domingo, com o tempo fomos passando de terça para quarta, para quinta, e hoje, em São Paulo, a maioria dos espetáculos só é apresentada de sexta a domingo.
Será que progredimos? Como será possível formar verdadeiros atores, sacrificando o teatro, a fonte primeira das artes cênicas, pela qual até mesmo o cinema e a TV, se querem encontram bons atores, deveriam zelar, em benefício próprio. O teatro é o grande formador, o caminho pelo qual o ator aprende um pouco mais a respeito de sua arte e — através dela — a respeito de outras artes e do mundo em geral, tornando-se instrumento muito mais categorizado.
O que será que houve, na verdade? Se voltarmos cem anos, como podia Arthur Azevedo montar suas memoráveis burletas? E como, há meio século, foi possível a histórica montagem de “O mambembe”, do Teatro dos Sete, com 17 ou 18 cenários deslumbrantes? Um pouco depois, como foi possível montar a complexa favela de “Gimba”? Ou o deslumbrante “O balcão”, de Ruth Escobar? Ou “Os pequenos burgueses” do Oficina, ou o “Macunaíma” do Antunes, ambos momentos cruciais da nossa história cultural?
Uma das respostas, sem dúvida, está no fato de o teatro brasileiro, por falta de investidores particulares, sempre ter ficado muito dependente do apoio governamental, em todos os níveis, sendo que hoje, ao que parece, a palavra teatro nem sequer chega aos ouvidos dos responsáveis pela boa saúde cultural do país, possivelmente só porque o teatro (apesar de um grande número de sucessos no exterior) não é considerado fonte de divisas, esquecendo que será muito difícil exportar cinema e televisão sem atores.
O único ponto positivo destes últimos tempos é a grande incidência de autores nacionais, muito embora ainda em quantidade, mais do que em qualidade. Mas, se me permitem a liberdade aqueles que devem (ou deveriam) zelar pela cultura no país, devo lembrar-lhes que o teatro (condenado, maltratado, negligenciado) ainda continua a ser o melhor documentário da vida dos países do Ocidente. Ele, como diz Shakespeare, é o “espelho da natureza” e, muito particularmente, da natureza política e social. Se queremos que o Brasil tenha uma história viva, é preciso estimular o teatro. E tampouco devem eles se esquecer do que recomenda Hamlet a Polonius sobre os atores: “Lembrai-vos que devem ser muito bem tratados, pois são o resumo e a crônica de nosso tempo; seria melhor ter um mau epitáfio depois de sua morte do que a sua maledicência enquanto estiver vivo.”
Todo mundo que faz ou lida com a vida no palco vem se queixando regularmente da decadência do teatro, mais ou menos desde o tempo de Eurípides, mas o quadro brasileiro, e ainda mais o carioca, atual é grave. Uma arte que já nos enriqueceu tanto não pode ser tratada com tanto desprezo e desrespeito. O teatro é de tal modo ignorado pelos poderes públicos que pode passar como não sendo relevante para ele o lastimável e assustador projeto da Ancinav, nitidamente inspirado no que há de pior em Zdhanov e Goebels. O projeto pode florear e enfeitar, mas censura, seja qual for o apelido, é censura, aquela mesma cujo fim foi tão comemorado, até por muitos dos que agora querem a sua volta. Claro que todos só pensam que o “cinav” do nefando projeto só se refere a cinema e TV, mas, como não há nada tão audiovisual quanto o teatro, não há dúvida de que caminhos serão encontrados para incluir essa matriz básica que o Ministério da Cultura parece considerar uma espécie de prima tão pobre que nem merece atenção.