ÉPOCA Se é natural ao ser humano buscar a felicidade, onde está o erro?
Bruckner O erro é esquecer que ninguém pode dizer o que o outro deve procurar, muito menos coletivamente. É perigoso achar que a existência só tem validade se a pessoa encontrar a felicidade. Essa é apenas uma das possibilidades na vida. Há várias outras, como a paixão e a liberdade. Recuso a noção de felicidade como objetivo maior da humanidade.
ÉPOCA O problema não é o que se considera felicidade hoje?
Bruckner O problema é a procura. Todos os que buscam a felicidade ficam mais infelizes, porque não se trata de uma caça ao tesouro ou à pedra filosofal. A busca da felicidade está fadada ao fracasso. É como procurar o príncipe encantado. Acabamos por nos privar dos pequenos prazeres e das pequenas alegrias, e ficamos com uma insatisfação permanente.
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'A depressão é a doença de uma sociedade que decidiu ser feliz a todo preço. Não se tolera mais a fragilidade. Tudo é visto sob o ângulo da patologia. Aí temos de medicar a existência. É desumano.
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Produto Interno Bruto alto não é sinônimo de povo feliz. A França um dos países mais ricos do mundo, é também onde se consome uma grande quantidade de antidepressivos.'
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ÉPOCA A felicidade transformada em objetivo coletivo é uma questão política?
Bruckner Muitos países querem se colocar como paraísos terrestres. Enquanto isso, um monte de gente morre de fome. Todos os Estados fascistas ou comunistas queriam padronizar a felicidade do povo. Isso é perigoso. Nenhum governo, patrão ou chefe de Estado tem o direito de nos dizer onde está nossa felicidade.
ÉPOCA Confunde-se felicidade e bem-estar?
Bruckner Dinheiro compra bem-estar, conforto, mas nada compra a felicidade. Nos países em que o Estado falha em suprir as necessidades básicas do cidadão, é compreensível que a felicidade seja vista como a ausência da tristeza. Mas ela não deve ser reduzida a uma definição pela negação. Nos países ricos, em que as pessoas dispõem de certa renda, têm casa e comem normalmente, a felicidade não é compulsória. Prova disso é que na França se consome uma enorme quantidade de antidepressivos.
ÉPOCA Sofrimento virou doença?
Bruckner Sempre detestamos o sofrimento, é normal. A novidade é que agora as pessoas não têm mais o direito de sofrer. Então, sofre-se em dobro. Querer que as pessoas se calem sobre a dor física ou psicológica é apenas agravar o mal.
ÉPOCA Felicidade virou símbolo de status?
Bruckner Mais que o dinheiro, ela é a nova ostentação dos ricos. Eles estão na mídia e exibem seus carros de luxo, sua vida amorosa extraordinária, seu sucesso social, financeiro ou mesmo moral, quando colaboram com instituições beneficentes. A felicidade virou parte da comédia social.
ÉPOCA Isso aumenta a crença de que ela pode ser conquistada?
Bruckner Há pessoas que correm a vida inteira atrás dela, e então a felicidade vira uma inquietação permanente. Ou seja, o sujeito já entrou no território da angústia. A felicidade vira uma prisão.
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'O Dalai-Lama deixou de lado a herança budista para se tornar acessível. Vende muito e virou referência espiritual para celebridades. Em seus livros, há bom senso, mas também um monte de besteira.
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No Oriente, a vida é uma seqüência de sofrimentos, ao passo que, no Ocidente, ela virou uma sucessão de gozos, que as pessoas perseguem numa saga quixotesca e patética. No fim, é igual.'
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ÉPOCA E o papel da religião em tudo isso?
Bruckner O cristianismo coloca a felicidade como o paraíso perdido ou por vir. É a noção da felicidade perfeita, ao pé de Deus. Praticamente todas as religiões falam do sofrimento e nos prometem a felicidade depois desta vida. No catolicismo, o sofrimento é tamanho que o Deus sangra e agoniza. Por outro lado, há cada vez mais religiões que se ocupam da felicidade na Terra, como evangélicos, budistas e hinduístas, por exemplo. Na verdade, nos tornamos todos crentes laicos: tentamos cumprir na Terra o ideal que o cristianismo nos propõe para o céu. Queremos fazer nossa felicidade como os penitentes de outros tempos se flagelavam. Nós nos penitenciamos nas academias de ginástica, no esforço permanente para emagrecer, nos regimes, na obrigação de ter orgasmo.
ÉPOCA Então nossa busca de felicidade não nos aproxima do hedonismo nem traz uma ruptura com certos valores religiosos?
Bruckner Curiosamente, todas as revoluções feitas nesse sentido, inclusive a Francesa, desembocam em um ideal ainda muito impregnado de religião. Nosso hedonismo acaba nos mortificando. Agredimos nosso corpo para torná-lo perfeito, musculoso, imortal. As salas de ginástica cada vez mais se parecem m salas de tortura. Carregamos a Inquisição conosco, e ela é o espelho. Continuamos no universo da mutilação, que é medieval.
ÉPOCA Isso ocorre também no Oriente?
Bruckner Para os povos orientais, existe a noção de reencarnação. Por um lado, pode-se esperar que a próxima vida seja melhor. Por outro, é preciso viver de forma a evitar as reencarnações e, assim, poder ir ao encontro da alma imortal de Brahma ou Buda. No Ocidente moderno a vida se tornou uma seqüência de gozos. E nossa busca frenética por essa verdade parece a saga de Dom Quixote. É patética.
ÉPOCA No século XIX, havia o 'mal do século'. Era lindo sofrer. Estamos vivendo isso às avessas?
Bruckner O 'mal do século' era uma estratégia do individualismo. O burguês era contente e satisfeito, ao passo que o artista exibia sua tristeza para se distinguir da massa. Até a doença se tornou uma forma de singularização. Hoje, a estratégia é a mesma: se distinguir, escapar da miséria comum.
ÉPOCA Por isso muita gente adota a atitude de ver alegria e perfeição em cada refeição, cada objeto, cada momento?
Bruckner É a estratégia dos estóicos, de fazer tudo como se fosse a última vez. É uma revalorização da vida cotidiana. É interessante, mas pode ser um mecanismo de autopersuasão, de se convencer da felicidade da própria existência, de evitar ser pego no 'erro'. Essas são pessoas que decidiram imperativamente ser felizes. Isso é muito suspeito, porque todo ser humano tem momentos de tristeza. Tentar esconder isso é se enganar.
ÉPOCA Os livros de auto-ajuda reforçam que só não é feliz quem não quer?
Bruckner Esse tipo de literatura sempre existiu. São livros contra as pequenas misérias do cotidiano: como se livrar de uma febre, remover uma mancha. Hoje, no entanto, os temas são mais amplos: promete-se a felicidade. Deepak Chopra, guru das estrelas de Hollywood, faz vários livros sobre o mesmo tema: como ganhar dinheiro, como fazer sucesso. Há sempre um ou dois conselhos que funcionam, mas esse tipo de receita vive muito próximo do charlatanismo.
ÉPOCA As pessoas felizes são menos interessantes?
Bruckner Ninguém é feliz ou infeliz o tempo todo. A vida não se divide entre essas duas polaridades. Muito mais importante que a felicidade é a liberdade, a capacidade de enfrentar problemas. A felicidade é um valor secundário, e é bom enfatizar isso para que não se sintam culpadas as pessoas que não chegam a ser felizes.
ÉPOCA O que seria a felicidade real, não-idealizada?
Bruckner Um sentimento sem objeto preestabelecido, algo que muda de acordo com a pessoa, com a época e com a idade. Nós a encontramos em alguns momentos, mas ela é fugidia por natureza, não vem quando a chamamos e às vezes chega quando menos esperamos. Há dois erros básicos na forma como a encaramos atualmente. Um é não reconhecê-la quando acontece ou considerá-la muito banal ou medíocre para acolhê-la. O segundo erro é o desejo de retê-la, como a uma propriedade. Jacques Prévert tem uma frase linda sobre isso: 'Reconheço a felicidade pelo barulho que ela faz ao partir'. A ilusão contemporânea é a da dominação da felicidade. Um triste erro."
O AUTOR
Pascal Bruckner nasceu em 1948 em Paris. Mestre em Filosofia e doutorado em Letras, foi professor convidado na Universidade de San Diego, Califórnia (1986), e na Universidade de Nova Iorque (1987–1995). Autor de uma vasta obra de ficção e ensaio, escreveu, em colaboração com Alain Finkielkraut, um dos livros charneira da década de 70: A Nova Desordem Amorosa (1977). Em 1995 ganhou o Prémio Médicis de ensaio com A Tentação da Inocência; dois anos mais tarde, o romance Ladrões de Beleza valeu-lhe o Prémio Renaudot. Lua de mel, Lua de fel (1981), adaptado ao cinema por Roman Polanski, é um dos seus romances mais conhecidos. Nos seus ensaios pratica um estilo rebelde e inconformista, situandose sempre em contracorrente e rejeitando sempre as dualidades maniqueístas que ciclicamente as sociedades procuram impor.
posted by Angela Scott Bueno #
1:45 PM